Filme: Fragmentos de Mindelo
Local: Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos-SDDH
Endereço: Av. Governador José Malcher, 1381 - Nazaré
Data: 25/05/2012
Horário: 18:30
Notícias das ilhas
maio 23rd, 2011 § 1 Comentário
“Chegou o crítico”, brincaram alguns alunos da pós-graduação em cinema quando apareci, terça passada, para minha primeira aula em Cabo Verde. Eles estavam finalizando um longa documental coletivo que colocaria à prova sua experiência prévia e também o aprendizado que chegava ao fim. Fragmentos do Mindelo foi exibido sábado no encerramento, e duvido que muitos docs de conclusão de curso apresentem a linguagem moderna e a abordagem incisiva que vi ali.
Um
dos episódios acompanhava, em exemplar estilo cinema direto, a chegada
de um pequeno container à casa de uma humilde família do Mindelo.
Enviado por um parente emigrado nos EUA, o recipiente em forma de barril
trazia roupas, calçados, brinquedos, shampoos, guloseimas. Diariamente
chegam dezenas dessas remessas aos portos do arquipélago. A explicação é
simples.
Mais de 60% da população caboverdiana vive fora do país, especialmente
em Massachussetts e Lisboa. As remessas financeiras deles respondem por
algo entre 30 e 40% do PIB do país. Os containers familiares são apenas
uma contribuição mais direta para suprir a baixa oferta de produtos de
consumo em Cabo Verde.
Outro
episódio do filme mostrava a construção de uma “casa-lata”, os barracos
de folhas de latão que colorem a periferia pobre da cidade, muito
semelhantes aos feitos com latas de óleo até os anos 1970 em bairros
populares brasileiros. Os moradores erguem-nos clandestinamente à espera
de que a Câmara do concelho subsidie sua transformação em casa de
concreto.
Um
dos fragmentos abordava o bairro controvertido de Ribeira Bote, que
alimenta não só o orgulho de ser a “primeira zona libertada” do jugo
português como a reputação de bairro perigoso, marcado por criminalidade
e tráfico de drogas. Esse aspecto foi desbravado por Luis Alencar, o
único brasileiro da turma, um baiano íntimo das favelas do Rio e autor
do longa doc Bombadeira.
Para
quem visita a cidade, entretanto, esse tipo de perigo parece lenda. O
ambiente singelo e relax de todo o país resulta, por exemplo, na
convivência entre pescadores pacatos jogando cartas, velhas vendedoras
limpando seus peixes e jovens partilhando marijuana numa mesma pracinha
do porto numa morna tarde de sábado.
A profunda paz do Mindelo não é quebrada nem mesmo nas noites de sexta,
quando os bares e esquinas se enchem de casais multirraciais, a moçada
da cerveja e estrangeiros curiosos, todos embalados pelos ritmos em que
se cruzam batidas africanas, swing caribenho e melancolia lusitana.
No
filme dos alunos há também um episódio sobre os blocos de Mandinga,
cujos participantes se pintam de preto e brincam de reviver suas
tradições afro. Saem no famoso Carnaval de Mindelo, simultâneo ao do
Brasil, mas “atrasado” um ano. Isso porque os mindelenses vêm ao Rio
após cada folia para comprar adornos e adereços usados, que estarão no
desfile deles no ano seguinte. Nessa época, o Mindelo costuma ser
chamado, em bom crioulo, de
“Brazilim”.
Cabo Verde não tem crítica de cinema porque quase não tem cinema. Nem
salas de cinema. A única sala comercial do Mindelo que ainda não se
transformou em igreja, o Eden Park, está inativo e foi objeto de uma
instalação aberta no sábado por Leão Lopes, cineasta, artista plástico e
maior referência cultural da cidade junto com a cantora Cesária Évora. A
instalação dispunha materiais de cinema no meio de uma
sala, frente a um televisor que exibia imagens do Eden Park com acentos
de marcha fúnebre. A expressão de revolta não parece fazer parte do
cotidiano de um povo que sempre privilegiou a tranquila interação
étnica, não conheceu grandes disparidades de classe e desfruta de uma
paz de espírito muito característica. O caboverdiano comum fala baixo e
sorri timidamente. Apressa-se a dizer “sim, sim” quando concorda com
você, e a exclamar “ui!” quando concorda muito. Adora dar “boléia”
(carona) nas estradas e botar a mesa para repartir com você.
A
culinária, porém, assim como o artesanato, não me encantou. A dieta
de legumes é pouco variada e os temperos que provei não pareciam nada
especiais, mesmo nos peixes e mariscos. Acho que a cozinha caboverdiana
padece também de certa timidez. O grogue, aguardente local, desceu
melhor quando misturado com mel no chamado pontche. Suspeito que estão
fazendo bons vinhos na Ilha do Fogo.
Cada ilha, aliás, tem suas particularidades. São Vicente, onde está
Mindelo, tem a capital
cultural e um porto importante. A estrada que corta a ilha de norte a
sul (em não mais que 30 minutos de carro) passa por paisagens
impressionantes, como uma espécie de Monument Valley à beira-mar.
Durante minha estada, tive oportunidade de percorrer alguns trechos da
árida Ilha do Sal, que sugere um Marte vulcânico. Os vulcões extintos
estão onde menos se espera, provocando belas surpresas no viajante. As
Salinas Pedra de Lume ocupam o bojo de uma cratera para onde o mar se
infiltrou e parecem uma visão sobrenatural. Já na Ilha de Santo Antão,
onde passei a sexta-feira de folga, uma imensa cratera foi coberta de
lavoura, trazendo à lembrança imagens do Peru inca. Santo Antão é a
maior, mais montanhosa e de natureza mais exuberante das ilhas. O
passeio por ela nos transporta de visões de planeta desabitado a aldeias
agrícolas que parecem saídas de ilustrações antigas e praias espargidas
ao pé de falésias abissais. É essa ilha que
fornece a maior parte do milho, feijão e batata, pratos de resistência
da cozinha do país, ao lado do peixe e da carne de txuk (porco).
Falta muita coisa a Cabo Verde: água potável, hortaliças, cinema,
indústrias, interação com o Brasil, uma maior divulgação de sua música
deliciosa. Segundo alguns, falta também vergonha na cara dos políticos
corruptos. A visão que o caboverdiano tem do Brasil é de um país de
números inimagináveis, futuro promissor, telenovelas interessantes e uma
realidade social conturbada. Os meus alunos analisaram criticamente Cidade de Deus e
discutiram uma série de críticas profissionais ao filme. A impressão
mais frequente foi um misto de fascinação pelo filme e repulsa pelas
condições da favela. Uma aluna iniciou seu texto com a pergunta “Onde
está Deus nessa cidade?”.
Em
matéria de nome, Cabo Verde também soa incongruente: não há cabo nem
muito verde naquele país. O tal cabo verde fica a centenas de
quilômetros, na costa do Senegal.
Faça com
que as
coisas
fiquem bem.
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