EXPOSIÇÃO "ÁFRICA: OLHARES CURIOSOS", Hilton Silva

segunda-feira, 12 de março de 2012

Em defesa da Lei 10.639

FOTOS RAFAEL CUSATO Trocar um trabalho tranquilo e garantido como chefe de Departamento de Recursos Humanos na antiga Companhia Energética de São Paulo (CESP), pela difícil tarefa de discutir a questão racial no mercado de trabalho e na educação, fez de Maria Aparecida Silva Bento - doutora em Psicologia pela USP e professora visitante da Universidade do Texas - uma das principais referências no assunto no Brasil. Fundadora do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e das Desigualdades (CEERT), organização responsável em colocar sindicatos, governo e empresas privadas, como o setor bancário, na discussão sobre a discriminação racial no mercado de trabalho, também é de sua ONG as principais ações relacionadas ao incentivo da aplicação da lei 10.639-03, que institui a obrigatoriedade do ensino da historia da África e de seus descendentes nas escolas, ações descritas com exclusividade nessa entrevista para a RAÇA BRASIL.



O Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) começou suas atividades há mais de 20 anos com ações direcionadas ao mundo do trabalho e das desigualdades. Por que, hoje, sua atuação está mais relacionada à educação?
Nossa primeira experiência de impacto foi com a prefeitura de Belo Horizonte, no ano de 1995. Inicialmente na área do trabalho, depois saúde e educação. Fomos aprofundando cada vez mais e, a partir deste movimento, foi que percebemos alguns problemas gravíssimos com a identidade racial das crianças. Pudemos perceber que as crianças negras tinham desconforto com o seu cabelo e a sua cor de pele, coisas bastante complicadas. Cada vez mais, começamos a estudar esse problema e produzir material para isso.

Quais os avanços e o que a senhora percebe no ambiente escolar nesses quase 10 anos da aprovação da lei 10.639, que obriga o ensino da África e seus descendentes na escola?

A lei é uma das maiores conquistas do movimento social e do povo brasileiro. Quando você tem uma lei, as condições de monitoramento e gestão obrigam o setor público e privado a dar respostas, por isso essa lei, sem dúvida, é uma das grandes conquistas que nós tivemos.


O que a senhora acha que poderia melhorar na implementação da lei 10.639?
Muita coisa, mas, se fosse pontuar, começaria pelo território das editoras. Gostaria muito que as edições tivessem mais negros produzindo sobre negros, mas, sem dúvida, cresceu muito o número desses livros nas escolas.

Em que nível escolar a senhora acredita que a lei deva ser mais incisiva?

Em todos, mas acho que uma das fases que se encontram muitas lacunas é no ensino fundamental, posso te dar uma exemplo: no ano passado participamos de uma audiência no MEC com empresários do setor de brinquedos que, a partir da nossa argumentação, se surpreenderam quando afirmamos que queríamos o MEC comprando brinquedos para as crianças de 0 a 6 anos de vida, mas que considerasse as bonecas negras, brinquedos com característica ou mesmo a origem africana. Tem muito brinquedo racista!

Esse recorte não era feito pelos empresários do setor?
Não, porque eles entendiam que isso não era importante, ninguém compra uma boneca negra. Então, por que eles vão fabricar esses brinquedos? Eles argumentavam o porquê de fabricar algo para crianças de cultura africana, o que é isso?

Existe também uma dificuldade para a implementação da lei, que é a resistência de parcela dos educadores, pelas mais diversas razões. Como vencer esse obstáculo?
Sim! Há muita dificuldade nessa área, por isso envolver e ganhar professor é de suma importância para o trabalho. Por outro lado, quando temos a lei conosco, podemos também entrar com uma ação contra um empregador desse professor. Se existe uma legislação referente ao tema no Brasil, a lei tem que ser cumprida, é um assunto delicado, mas contamos com argumentos que são incontestáveis. Quer um exemplo? Os professores no Brasil nunca tiveram problemas em trazer a cultura europeia. Parece que o ensino da cultura europeia em nosso país era obrigatório. O negro e o indígena fazem parte da formação do povo brasileiro com a sua contribuição e história, que nunca eram contadas de forma respeitosa e verdadeira no nosso currículo escolar. Nós do CEERT temos visto como um passo bastante positivo usar da legislação para cobrar o poder público.

Em entrevista à RAÇA BRASIL, a professora Petronilia - autora do parecer do Conselho Nacional de Educação favorável à lei - declarou que a participação da família, exigindo que se cumpra a lei, é fundamental para o sucesso da mesma...
O lugar da família nessa questão é compreender a importância que tem para a criança ouvir histórias sobre negro na escola, ler livros sobre quem tem família com experiências negras se ver contemplado no ambiente escolar. Entender a comunicação que a escola faz, as brincadeiras com os brinquedos que a escola tem. Os recursos hoje para comprar estão indo direto para as escolas, os pais têm que acompanhar através de reuniões se esse dinheiro está sendo bem gasto, se os professores estão informados sobre este sistema. Não admitir que a escola só conte histórias de Branca de Neve, nós também temos princesas negras, então, são os pais que têm que desenvolver esse papel e cobrar da política do MEC e interferir nos livros que o órgão manda para a escola, afinal, é com o dinheiro dos nossos impostos que isso é feito, não podemos patrocinar políticas que nos discriminem, principalmente, em um dos nossos alicerces de formação, que é a escola.


" A LEI É UMA DAS MAIORES CONQUISTAS DO MOVIMENTO SOCIAL E DO POVO BRASILEIRO. QUANDO VOCÊ TEM UMA LEI, AS CONDIÇÕES DE MONITORAMENTO E GESTÃO OBRIGAM O SETOR PÚBLICO E PRIVADO A DAR RESPOSTA "
Fale um pouco sobre o prêmio Educar Pela Igualdade, do qual a senhora é uma das idealizadoras.
O prêmio completa 10 anos em 2012, é o primeiro nessa área.
Quando começou, nós tínhamos a ideia de premiar heróis anônimos (professor), tentando trabalhar esse tema em sala de aula. Isso foi antes da aprovação da lei 10.639.
Havíamos, naquele momento, detectado problemas com as crianças, então, a primeira fase foi mapear o que é que estava acontecendo no Brasil e de verdade, acertamos.
Havia muitos professores tentando romper a barreira do preconceito e do racismo no meio escolar; eu vi uma professora negra trabalhar com temática racial, com o combate ao racismo. Hoje, a gente recebe quase duas mil experiências que contemplam todos os estados brasileiros e crianças até o final do ensino médio.

E as experiências apresentadas mudaram muito nesse período?
Bastante! No início trabalhava-se muito com cultura, que aparecia muito na voz do professor. Ele, que começou a trabalhar com isso, queria recuperar e resgatar o patrimônio cultural, trazer cultura negra. Interferir na formação da autoestima do aluno negro é muito interessante quando a gente escuta essas experiências.


FOTOS RAFAEL CUSATO
A senhora, anteriormente, falou de uma professora negra. Qual é o percentual étnico dos professores que apresentam essas experiências?
Uma boa parte do tempo, metade das mensagens eram de professores brancos e a outra metade, de professores negros. E as professoras são quase 90% . E, agora, a gente tem também educadores que desenvolvem experiências dentro da sala de aula. Existe muito da cultura, da história, da geografia, da literatura, mas temos que inserir também na matemática e em outras áreas, formando, assim, um mosaico bastante interessante e uma transversalidade de ensino da história da África e seus descendentes em todas as matérias.

Como é feito a premiação, quem são os contemplados?
São premiados os três melhores trabalhos para cada ano: o infantil, o fundamental I, o fundamental II e o ensino médio. Estamos também oferecendo prêmios para as escolas. Ao premiar as escolas, queremos que aquela experiência que o professor fala na sala, seja assumida pela escola para que a direção prestasse mais atenção nos livros que ela compra dos processos de formação combinados com a Secretária de Educação e Ministério da Educação no combate ao racismo.

" AS ONGS TÊM TIDO UM PAPEL FUNDAMENTAL NA QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO DO PAÍS AO LONGO DOS ÚLTIMOS 20 ANOS. TRAZENDO ESSES VALORES LIGADOS À DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO NA LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA, CONTRA EXCLUSÃO E A DESIGUALDADE, ESSAS ORGANIZAÇÕES, HÁ ALGUNS ANOS, TÊM PASSADO MUITAS DIFICULDADES "
Uma das características da ONG que a senhora dirige é trabalhar com filhos de ativistas do Movimento Social Negro. Como é essa experiência?
Quando trabalhamos com filhos de militantes, realmente o processo é bem diferenciado ao de uma pessoa comum. Ao longo do tempo, tivemos várias experiências, muitas vezes, são filhos de pessoas que já trabalhamos ou conhecemos no decorrer da luta e que se aproximam do trabalho que desenvolvemos com certo conhecimento de nossa missão e com uma visão um pouco mais apurada. As experiências são sempre muito interessantes, porque rapidamente eles se engajam e aí temos que tomar cuidado e prestar atenção na sua formação e nos seus estudos, pois eles vão se apaixonando cada vez mais pela causa - isso é muito importante - mas tem que ser visto e analisado. Eles são muito importantes para o movimento. Me aborrece muito quando vou a esses encontros e não vejo jovens negros. Sempre me pergunto: "quem vai continuar com o nosso trabalho?"

Sendo responsável por uma das mais importantes ONGs do movimento negro, como a senhora analisa os ataques que essas instituições têm sofrido nos últimos meses?
As ONGs têm tido um papel fundamental na questão do desenvolvimento do país ao longo dos últimos 20 anos. Trazendo esses valores ligados à democracia, participação na luta contra a violência, contra exclusão e a desigualdade, essas organizações, há alguns anos, têm passado muitas dificuldades. Aproveitou-se de um percentual pequeníssimo de ONGs corruptas para difundir uma ideia de que todas são corruptas. Nós do CEERT estamos vivendo coisas que as outras organizações estão vivendo nesse difícil momento, quer dizer, todo mundo tem uma ideia ruim das ONGs, mas nem todas são iguais. Já era uma batalha conseguir apoio financeiro para trabalhar com a questão racial, ninguém quer trabalhar isso, por isso, nos últimos anos várias entidades negras acabaram por fechar. E aproveitou-se de algo muito ruim para silenciar essa voz que é crítica com relação ao Estado.

Como professores e escola podem concorrer ao prêmio Educar Pela Igualdade?

O prêmio abre suas inscrições no dia 30 de março e vai até o dia 25 de maio. Nós vamos ter um espaço no site - www.ceert.org.br - que é só para isso. Lá, o professor encontra todo o material e pode aproveitar para baixar vídeos, editar experiências que já foram desenvolvidas e escrever a sua própria experiência.

Por Maurício Pestana

Fonte: Revista Raça Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário