Artigo de Roberta Fusconi e Guimes Rodrigues Filho (*)
Na Semana Cultural da escola, a classe de Aisha e Yetundê apresentaria o tema África sugerido pela professora porque, aprendendo sobre esse continente, as crianças conheceriam melhor o Brasil. Consultada sobre onde encontrar material sobre o assunto, vovó Nanã, que nasceu na Nigéria, falou da riqueza da oralidade na tradição africana e de como as pessoas são educadas com o uso da palavra falada, e completou: “Infelizmente, muita coisa não está escrita. Por isso dizem que o africano não construiu nada. Mas é mentira – advertiu Nanã. – A humanidade surgiu na África e os africanos tinham um conhecimento antigo em diversas ciências –, a avó comentou.” (Fonseca, 2009).
É no continente africano – que há aproximadamente 200 milhões de anos encontrava-se unido ao Brasil, formando com os outros continentes do atual hemisfério sul o supercontinente Gonduana (do inglês Gondwana) – que os pesquisadores de todo o mundo buscam a origem da humanidade. As evidências de que o Homo sapiens teve origem em África são muitas. Escavações no deserto de Afar, na Etiópia, nos apresentaram Lucy e a menina Selam (“paz”, em diversas línguas etíopes), ambos Australopithecus afarensis que viveram há 3,2 milhões e 3,3 milhões de anos, respectivamente. Foram encontrados na África do Sul fósseis humanos denominados Australopithecus sediba, com cerca de 1,95 milhão de anos (Wong, 2010). Não obstante existam teorias e polêmicas, é certo que todos os fósseis que podem ser os antepassados diretos de nosso gênero Homo estão no continente africano. Corroborando com esses dados, uma pesquisa publicada em 2007, que apresenta o estudo de variações genéticas globais e medidas cranianas de diferentes regiões do mundo, demonstra que o Homo sapiens teve origem única: a África (Manica et al., 2007).
Segundo Adams III (1986), é fato que na África existe uma rica história de conhecimento científico, descobertas e invenções que antecedem o surgimento da civilização europeia: a descoberta do tempo, o controle do fogo, o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas, a linguagem e a agricultura. Nada no século 20, segundo o autor, contribuiu tanto para o desenvolvimento da humanidade como esse conhecimento da matriz africana – nem a chegada à Lua, a descoberta do DNA ou a energia nuclear, a televisão ou o laser, e nem mesmo o automóvel.
Assim, é necessário destacar elementos norteadores da ciência e tecnologia na aplicação da lei federal 10.639/03 que tenham bases no conhecimento africano como, por exemplo, o fato de que no século XIX um médico inglês chamado R. Felkin, em contato com os Banyoros, na região que hoje compreende Uganda, testemunhou uma cirurgia cesariana. Felkin descreve com êxtase os passos da cirurgia, ressaltando as técnicas de cauterização, assepsia, etc. Felkin destaca que as mãos do cirurgião africano trabalham com sensibilidade, maestria e delicadeza difíceis de serem encontradas nos cirurgiões ocidentais (De Smet, 1998).
O instrumento médico utilizado na cirurgia cesariana foi levado por Felkin e se encontra exposto no Museu de Londres. É claro que a construção do instrumento tem como base a integração entre os Orixás e os seres humanos pois, segundo o itan de Ogum, que já traz em si o conhecimento tecnológico, esse Orixá concedeu aos seres humanos o segredo da forja do ferro:
Ogum e seus amigos Alaká e Ajero foram consultar Ifá. Queriam saber uma forma de se tornarem reis de suas aldeias. Após a consulta foram instruídos a fazer ebó. (...) Os amigos de Ogum tornaram-se reis de suas aldeias, mas a situação de Ogum permanecia a mesma. Preocupado, Ogum foi novamente consultar Ifá. E o advinho recomendou que refizesse o ebó. Depois, deveria esperar a próxima chuva e procurar um local onde houvesse ocorrido uma erosão. Ali devia apanhar da areia negra e fina e colocá-la no fogo para queimar. Ansioso pelo sucesso, Ogum fez o ebó. E, para sua surpresa, ao queimar aquela areia, ela se transformou na quente massa que se solidificou em ferro. O ferro era a mais dura substância que ele conhecia. Mas era maleável enquanto estava quente. Ogum passou a modelar a massa quente. Ogum forjou primeiro uma tenaz. Um alicate para retirar o ferro quente do fogo. E assim era mais fácil manejar a pasta incandescente. Ogum então forjou uma faca e um facão. Satisfeito, Ogum passou a produzir toda espécie de objetos de ferro. Assim como passou a ensinar seu manuseio. Veio fartura e abundância para todos. Dali em diante Ogum Alegbedé, o ferreiro, mudou. Muito prosperou e passou a ser saudado. Como Aquele que Transforma a Terra em Dinheiro. (Prandi, 2001).
O ferro é o elemento químico mais abundante na crosta terrestre e sua importância é destacada pela sua utilização nas construções civil, naval e aeronáutica, entre outras. Reaproveitado de pneus velhos, serve à confecção do berimbau, ou seja, a corda que vibra no instrumento é feita a partir do compartilhamento do conhecimento de Ogum.
A partir do conhecimento da estabilidade nuclear do ferro obtemos informações sobre a estabilidade de todos os outros elementos químicos encontrados na natureza. Aqueles classificados como mais pesados do que o ferro ficam à sua direita e os mais leves, à sua esquerda. Esta classificação nos leva aos estudos da radioquímica segundo a qual, os elementos mais pesados do que o ferro tendem a sofrer um fenômeno chamado de fissão nuclear (reação básica que faz funcionar os reatores que podem servir à humanidade na medicina, na indústria de alimentos, etc., ou mesmo levar à produção das chamadas armas nucleares), enquanto os mais leves sofrem a reação de fusão nuclear. Todos esses fenômenos demonstram que a tendência dos elementos da natureza é buscar a estabilidade do ferro de Ogum.
Cabe uma reflexão sobre por que não encontramos, durante a nossa formação nos cursos de graduação em ciências – engenharia, química, física, biologia, etc. – informações sobre os saberes e fazeres dos povos africanos. Estes saberes e fazeres são ocultados para justificar a colonização, a apropriação das riquezas e do conhecimento e a destruição daquele continente por parte do Ocidente. No entanto, Sherby e Wadsworth (2001) propuseram uma nova sequência para a idade dos metais. O início da idade do ferro, que se acredita datar de 1000 a.C., foi alterado para incluir o conhecimento da metalurgia desse elemento químico pelos africanos. Essa modificação se baseou em pesquisas que encontraram uma placa de ferro na pirâmide de Quéfren, no Egito, que data de 3700 a.C. Tal descoberta demonstra, segundo os autores, o conhecimento ancestral da metalurgia do ferro no continente africano.
Anteriormente, falamos do berimbau. Mas o que é o berimbau que contém o arame – encontrado nos pneus – e fabricado a partir do ferro de Ogum?
“Eu vou ler o beabá / o beabá do berimbau / a moeda e o arame/ e o pedaço de pau/ a cabaça e o caxixi / aí está o berimbau/ berimbau é um instrumento que toca numa corda só/ agora acabei de crer/ berimbau é o maior...”
(domínio popular)
O berimbau é um arco musical de matriz africana. Segundo Shaffer (1977), os mestres de Capoeira dizem que Gunga é o nome africano, e berimbau o nome português. Em Angola, encontramos arcos musicais que lembram o berimbau: “humbo”, “rucumbo”, “lucungo”, “hungu”, “m´borumbuma”, entre outros. Trazidos para o Brasil pelos negros escravizados, provavelmente, esses arcos foram reinventados e introduzidos na resistência da cultura africana por meio das rodas de capoeira. O berimbau nos conduz ao livro animado de A Cor da Cultura, Berimbau, de Raquel Coelho. Na animação, ouvimos o som do instrumento ecoando das mãos do griot, ao ensinar a Léo que a parte superior do berimbau aponta para o futuro, seu meio aponta para o presente e sua parte inferior aponta para o passado, abrindo as portas para conversar sobre a nossa ancestralidade.
Nesse contexto, o berimbau pode ser apresentado como uma matriz africana para o ensino de ciências. (Fusconi & Rodrigues Filho, 2007) É possível construir com os educandos conceitos de biologia a partir de seu pedaço de pau, sua verga – a biriba – de seu chocalho – o caxixi – e de sua caixa de ressonância – a cabaça. A discussão permeia a história e culturas africanas e afro-brasileiras e o ensino de ciências. Uma vez que tanto a verga do berimbau como o caxixi são tradicionalmente feitos, respectivamente, a partir da biriba (Eschweilera ovata) e do cipó-titica (Heteropsis flexuosa), recursos naturais ameaçados ou encontrados em ambientes ameaçados, como a Mata Atlântica e a região Amazônica (Gusson, 2003; Plowden, Uhl & Oliveira, 2003), é possível discutir temas bastante atuais como a importância da biodiversidade, a conservação e manejo dos recursos naturais, a degradação dos ecossistemas e o desenvolvimento sustentável, entre outros. Soma-se o fato de que a cabaça é o fruto seco de uma espécie de trepadeira (Lagenaria vulgaris) cuja possível origem, conforme aponta a Carta de Caminha, deveria estar no chamado “Velho Mundo” (Filgueiras & Peixoto, 2002). No entanto, pesquisas recentes relatam que a cabaça teria sido introduzida no Brasil pelos negros escravizados (Queiroz, 1993).
A cabaça, que é o eco do som do berimbau africano no Brasil, na África, entre outros usos, é utilizada pelas mulheres do povo Bahima (Uganda) durante o processo de produção do ghee. O tema é abordado no episódio dos Livros Animados d’A Cor da Cultura, no qual o gato e o rato têm uma amizade que não dura para sempre. O conto animado “Amigos, mas não para sempre”, que pertence à tradição oral de Uganda, foi proposto pelo projeto A Cor da Cultura como ponto de partida para trabalhar na Educação Infantil e Ensino Fundamental. Na animação, o rato nos ensina uma prática que aprendeu com as mulheres e que os humanos utilizam para não passar fome na época da seca: a produção do ghee, uma manteiga deliciosa, obtida a partir do leite que é fornecido pelo gado Ankole que tem chifres enormes, e do qual depende a subsistência do povo nômade Bahima.
A partir da contextualização de aspectos relacionados à história e cultura africanas, o conto pode ser utilizado para discutir o saber biotecnológico do povo Bahima, com ênfase na biotecnologia microbiana na produção de alimentos a partir do leite (Fusconi, 2010). O povo Bahima usa a cabaça como reator, na qual colocam o leite que vai ser fermentado por microrganismos de interesse biotecnológico – como revelado pelos pesquisadores japoneses Ongol & Asano (2009). Reatores de cabaça foram reinventados a partir do conhecimento científico desenvolvido na África, como os reatores de aço (mistura de ferro e carbono) de Ogum, utilizados hoje em dia para os mais diversos fins, tais como produção de alimentos, cultivo de microrganismos de interesse industrial, produção de fármacos e de cosméticos, tratamento de esgoto, entre outros.
Há, como podemos ver, várias possibilidades de trabalhar a questão da ciência e tecnologia a partir da matriz africana. Esperamos que esse breve ensaio ajude-o na implementação da Lei federal 10.639/03.
Mojubá!
(*) Os autores são vinculados á Universidade Federal de Uberlândia e ao Instituto de Educação e Cultura Gunga (Igunga)
Referências bibliográficas
A COR DA CULTURA, Livros Animados, DVD 1 e 3, 2006.
ADAMS III, H. H., African and African-american Contributions to Science and Technology, PPS Geocultural Base Line Essay Series, S-1 – S133.
ARRUDA-GATTI, I.C. de; SILVA, F.A.C. da; VENTURA, M.U. Responses of Diabrotica Speciosa to a Semiochemical Trap Characteristics. Brazilian Archives of Biology and Technology, Curitiba, v. 49, n.6, p. 975-980, 2006.
DE SMET, P. A. G. M., Traditional Pharmacology and Medicine in Africa: Ethnopharmacological Themes in Sub-Saharan Art Objects and Utensils. Journal of Ethnopharmacology, v. 63, p. 1-179, 1998.
FILGUEIRAS, T.S.; PEIXOTO, A.L. Flora e vegetação do Brasil na Carta de Caminha. Acta Botanica Brasilica, São Paulo, v. 16, n.3, p. 263-272, 2002.
FONSECA, D.J. Vovó Nanã vai à escola. São Paulo: FDT, 2009.
FUSCONI, R.; RODRIGUES FILHO, G. 2007. O berimbau como pressuposto para o ensino de biologia segundo a Lei 10639/03. In: Anais do III seminário Racismo e Educação & II seminário Gênero Raça e Etnia: desafios para a formação docente. Universidade Federal de Uberlândia, MG. ISBN 978-85-7078-173-4.
FUSCONI, R. A diversidade microbiana na biotecnologia e na Lei federal 10.639/03. Minicurso. XXII Semana Científica de Estudos Biológicos, Universidade Federal de Uberlândia, 2010.
GUSSON, E. Uso e diversidade genética em populações naturais de biriba (Eschweilera ovata [Cambess.] Miers): subsídios ao manejo e conservação da espécie. 91p. Dissertação (Mestrado em Agroecossistemas) – ESALQ, Universidade de São Paulo, 2003.
MANICA, A.; AMOS, W.; BALLOUX, F; HANIHARA, T., The Effect of Ancient Population Bottlenecks on Human Phenotypic Variation, Nature, v.448, p.346-348,2007.
ONGOL M.P.; ASANO K. Main Microorganisms Involved in the Fermentation of Ugandan Ghee. International Journal of Food Microbiology, 133, p.286–291, 2009.
PLOWDEN, C.; UHL, C.; OLIVEIRA, F.A. The Ecology and Harvest Potential of Titica Vine Roots (Heteropsis flexuosa: Araceae) the Eastern Brazilian Amazon. Forest Ecology and Management, v.182, p. 59-73, 2003.
PRANDI, R., Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
QUEIROZ, M.A. de. Conservação e desenvolvimento de cucurbitáceas no Nordeste brasileiro. In: ENCONTRO DE GENÉTICA DO NORDESTE, 1993, Tereseina. Anais. Teresina: UFPI, p.69, 1993.
SHAFFER, Kay. O Berimbau-de-barriga e seus toques. Rio de Janeiro: Funarte, 1977.
SHERBY, O. D.; WADSWORTH, J., Ancient Blacksmith, the Iron Age, Damascus Steels, and Modern Metallurgy, Journal of Materials Processing Technology, v. 117, p. 347-353, 2001.
WONG, K., O encontro de uma nova espécie, Scientific American Brasil, no 37, p. 16-19, 2010.
Fonte: A Cor da Cultura
Na Semana Cultural da escola, a classe de Aisha e Yetundê apresentaria o tema África sugerido pela professora porque, aprendendo sobre esse continente, as crianças conheceriam melhor o Brasil. Consultada sobre onde encontrar material sobre o assunto, vovó Nanã, que nasceu na Nigéria, falou da riqueza da oralidade na tradição africana e de como as pessoas são educadas com o uso da palavra falada, e completou: “Infelizmente, muita coisa não está escrita. Por isso dizem que o africano não construiu nada. Mas é mentira – advertiu Nanã. – A humanidade surgiu na África e os africanos tinham um conhecimento antigo em diversas ciências –, a avó comentou.” (Fonseca, 2009).
É no continente africano – que há aproximadamente 200 milhões de anos encontrava-se unido ao Brasil, formando com os outros continentes do atual hemisfério sul o supercontinente Gonduana (do inglês Gondwana) – que os pesquisadores de todo o mundo buscam a origem da humanidade. As evidências de que o Homo sapiens teve origem em África são muitas. Escavações no deserto de Afar, na Etiópia, nos apresentaram Lucy e a menina Selam (“paz”, em diversas línguas etíopes), ambos Australopithecus afarensis que viveram há 3,2 milhões e 3,3 milhões de anos, respectivamente. Foram encontrados na África do Sul fósseis humanos denominados Australopithecus sediba, com cerca de 1,95 milhão de anos (Wong, 2010). Não obstante existam teorias e polêmicas, é certo que todos os fósseis que podem ser os antepassados diretos de nosso gênero Homo estão no continente africano. Corroborando com esses dados, uma pesquisa publicada em 2007, que apresenta o estudo de variações genéticas globais e medidas cranianas de diferentes regiões do mundo, demonstra que o Homo sapiens teve origem única: a África (Manica et al., 2007).
Segundo Adams III (1986), é fato que na África existe uma rica história de conhecimento científico, descobertas e invenções que antecedem o surgimento da civilização europeia: a descoberta do tempo, o controle do fogo, o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas, a linguagem e a agricultura. Nada no século 20, segundo o autor, contribuiu tanto para o desenvolvimento da humanidade como esse conhecimento da matriz africana – nem a chegada à Lua, a descoberta do DNA ou a energia nuclear, a televisão ou o laser, e nem mesmo o automóvel.
Assim, é necessário destacar elementos norteadores da ciência e tecnologia na aplicação da lei federal 10.639/03 que tenham bases no conhecimento africano como, por exemplo, o fato de que no século XIX um médico inglês chamado R. Felkin, em contato com os Banyoros, na região que hoje compreende Uganda, testemunhou uma cirurgia cesariana. Felkin descreve com êxtase os passos da cirurgia, ressaltando as técnicas de cauterização, assepsia, etc. Felkin destaca que as mãos do cirurgião africano trabalham com sensibilidade, maestria e delicadeza difíceis de serem encontradas nos cirurgiões ocidentais (De Smet, 1998).
O instrumento médico utilizado na cirurgia cesariana foi levado por Felkin e se encontra exposto no Museu de Londres. É claro que a construção do instrumento tem como base a integração entre os Orixás e os seres humanos pois, segundo o itan de Ogum, que já traz em si o conhecimento tecnológico, esse Orixá concedeu aos seres humanos o segredo da forja do ferro:
Ogum e seus amigos Alaká e Ajero foram consultar Ifá. Queriam saber uma forma de se tornarem reis de suas aldeias. Após a consulta foram instruídos a fazer ebó. (...) Os amigos de Ogum tornaram-se reis de suas aldeias, mas a situação de Ogum permanecia a mesma. Preocupado, Ogum foi novamente consultar Ifá. E o advinho recomendou que refizesse o ebó. Depois, deveria esperar a próxima chuva e procurar um local onde houvesse ocorrido uma erosão. Ali devia apanhar da areia negra e fina e colocá-la no fogo para queimar. Ansioso pelo sucesso, Ogum fez o ebó. E, para sua surpresa, ao queimar aquela areia, ela se transformou na quente massa que se solidificou em ferro. O ferro era a mais dura substância que ele conhecia. Mas era maleável enquanto estava quente. Ogum passou a modelar a massa quente. Ogum forjou primeiro uma tenaz. Um alicate para retirar o ferro quente do fogo. E assim era mais fácil manejar a pasta incandescente. Ogum então forjou uma faca e um facão. Satisfeito, Ogum passou a produzir toda espécie de objetos de ferro. Assim como passou a ensinar seu manuseio. Veio fartura e abundância para todos. Dali em diante Ogum Alegbedé, o ferreiro, mudou. Muito prosperou e passou a ser saudado. Como Aquele que Transforma a Terra em Dinheiro. (Prandi, 2001).
O ferro é o elemento químico mais abundante na crosta terrestre e sua importância é destacada pela sua utilização nas construções civil, naval e aeronáutica, entre outras. Reaproveitado de pneus velhos, serve à confecção do berimbau, ou seja, a corda que vibra no instrumento é feita a partir do compartilhamento do conhecimento de Ogum.
A partir do conhecimento da estabilidade nuclear do ferro obtemos informações sobre a estabilidade de todos os outros elementos químicos encontrados na natureza. Aqueles classificados como mais pesados do que o ferro ficam à sua direita e os mais leves, à sua esquerda. Esta classificação nos leva aos estudos da radioquímica segundo a qual, os elementos mais pesados do que o ferro tendem a sofrer um fenômeno chamado de fissão nuclear (reação básica que faz funcionar os reatores que podem servir à humanidade na medicina, na indústria de alimentos, etc., ou mesmo levar à produção das chamadas armas nucleares), enquanto os mais leves sofrem a reação de fusão nuclear. Todos esses fenômenos demonstram que a tendência dos elementos da natureza é buscar a estabilidade do ferro de Ogum.
Cabe uma reflexão sobre por que não encontramos, durante a nossa formação nos cursos de graduação em ciências – engenharia, química, física, biologia, etc. – informações sobre os saberes e fazeres dos povos africanos. Estes saberes e fazeres são ocultados para justificar a colonização, a apropriação das riquezas e do conhecimento e a destruição daquele continente por parte do Ocidente. No entanto, Sherby e Wadsworth (2001) propuseram uma nova sequência para a idade dos metais. O início da idade do ferro, que se acredita datar de 1000 a.C., foi alterado para incluir o conhecimento da metalurgia desse elemento químico pelos africanos. Essa modificação se baseou em pesquisas que encontraram uma placa de ferro na pirâmide de Quéfren, no Egito, que data de 3700 a.C. Tal descoberta demonstra, segundo os autores, o conhecimento ancestral da metalurgia do ferro no continente africano.
Anteriormente, falamos do berimbau. Mas o que é o berimbau que contém o arame – encontrado nos pneus – e fabricado a partir do ferro de Ogum?
“Eu vou ler o beabá / o beabá do berimbau / a moeda e o arame/ e o pedaço de pau/ a cabaça e o caxixi / aí está o berimbau/ berimbau é um instrumento que toca numa corda só/ agora acabei de crer/ berimbau é o maior...”
(domínio popular)
O berimbau é um arco musical de matriz africana. Segundo Shaffer (1977), os mestres de Capoeira dizem que Gunga é o nome africano, e berimbau o nome português. Em Angola, encontramos arcos musicais que lembram o berimbau: “humbo”, “rucumbo”, “lucungo”, “hungu”, “m´borumbuma”, entre outros. Trazidos para o Brasil pelos negros escravizados, provavelmente, esses arcos foram reinventados e introduzidos na resistência da cultura africana por meio das rodas de capoeira. O berimbau nos conduz ao livro animado de A Cor da Cultura, Berimbau, de Raquel Coelho. Na animação, ouvimos o som do instrumento ecoando das mãos do griot, ao ensinar a Léo que a parte superior do berimbau aponta para o futuro, seu meio aponta para o presente e sua parte inferior aponta para o passado, abrindo as portas para conversar sobre a nossa ancestralidade.
Nesse contexto, o berimbau pode ser apresentado como uma matriz africana para o ensino de ciências. (Fusconi & Rodrigues Filho, 2007) É possível construir com os educandos conceitos de biologia a partir de seu pedaço de pau, sua verga – a biriba – de seu chocalho – o caxixi – e de sua caixa de ressonância – a cabaça. A discussão permeia a história e culturas africanas e afro-brasileiras e o ensino de ciências. Uma vez que tanto a verga do berimbau como o caxixi são tradicionalmente feitos, respectivamente, a partir da biriba (Eschweilera ovata) e do cipó-titica (Heteropsis flexuosa), recursos naturais ameaçados ou encontrados em ambientes ameaçados, como a Mata Atlântica e a região Amazônica (Gusson, 2003; Plowden, Uhl & Oliveira, 2003), é possível discutir temas bastante atuais como a importância da biodiversidade, a conservação e manejo dos recursos naturais, a degradação dos ecossistemas e o desenvolvimento sustentável, entre outros. Soma-se o fato de que a cabaça é o fruto seco de uma espécie de trepadeira (Lagenaria vulgaris) cuja possível origem, conforme aponta a Carta de Caminha, deveria estar no chamado “Velho Mundo” (Filgueiras & Peixoto, 2002). No entanto, pesquisas recentes relatam que a cabaça teria sido introduzida no Brasil pelos negros escravizados (Queiroz, 1993).
A cabaça, que é o eco do som do berimbau africano no Brasil, na África, entre outros usos, é utilizada pelas mulheres do povo Bahima (Uganda) durante o processo de produção do ghee. O tema é abordado no episódio dos Livros Animados d’A Cor da Cultura, no qual o gato e o rato têm uma amizade que não dura para sempre. O conto animado “Amigos, mas não para sempre”, que pertence à tradição oral de Uganda, foi proposto pelo projeto A Cor da Cultura como ponto de partida para trabalhar na Educação Infantil e Ensino Fundamental. Na animação, o rato nos ensina uma prática que aprendeu com as mulheres e que os humanos utilizam para não passar fome na época da seca: a produção do ghee, uma manteiga deliciosa, obtida a partir do leite que é fornecido pelo gado Ankole que tem chifres enormes, e do qual depende a subsistência do povo nômade Bahima.
A partir da contextualização de aspectos relacionados à história e cultura africanas, o conto pode ser utilizado para discutir o saber biotecnológico do povo Bahima, com ênfase na biotecnologia microbiana na produção de alimentos a partir do leite (Fusconi, 2010). O povo Bahima usa a cabaça como reator, na qual colocam o leite que vai ser fermentado por microrganismos de interesse biotecnológico – como revelado pelos pesquisadores japoneses Ongol & Asano (2009). Reatores de cabaça foram reinventados a partir do conhecimento científico desenvolvido na África, como os reatores de aço (mistura de ferro e carbono) de Ogum, utilizados hoje em dia para os mais diversos fins, tais como produção de alimentos, cultivo de microrganismos de interesse industrial, produção de fármacos e de cosméticos, tratamento de esgoto, entre outros.
Há, como podemos ver, várias possibilidades de trabalhar a questão da ciência e tecnologia a partir da matriz africana. Esperamos que esse breve ensaio ajude-o na implementação da Lei federal 10.639/03.
Mojubá!
(*) Os autores são vinculados á Universidade Federal de Uberlândia e ao Instituto de Educação e Cultura Gunga (Igunga)
Referências bibliográficas
A COR DA CULTURA, Livros Animados, DVD 1 e 3, 2006.
ADAMS III, H. H., African and African-american Contributions to Science and Technology, PPS Geocultural Base Line Essay Series, S-1 – S133.
ARRUDA-GATTI, I.C. de; SILVA, F.A.C. da; VENTURA, M.U. Responses of Diabrotica Speciosa to a Semiochemical Trap Characteristics. Brazilian Archives of Biology and Technology, Curitiba, v. 49, n.6, p. 975-980, 2006.
DE SMET, P. A. G. M., Traditional Pharmacology and Medicine in Africa: Ethnopharmacological Themes in Sub-Saharan Art Objects and Utensils. Journal of Ethnopharmacology, v. 63, p. 1-179, 1998.
FILGUEIRAS, T.S.; PEIXOTO, A.L. Flora e vegetação do Brasil na Carta de Caminha. Acta Botanica Brasilica, São Paulo, v. 16, n.3, p. 263-272, 2002.
FONSECA, D.J. Vovó Nanã vai à escola. São Paulo: FDT, 2009.
FUSCONI, R.; RODRIGUES FILHO, G. 2007. O berimbau como pressuposto para o ensino de biologia segundo a Lei 10639/03. In: Anais do III seminário Racismo e Educação & II seminário Gênero Raça e Etnia: desafios para a formação docente. Universidade Federal de Uberlândia, MG. ISBN 978-85-7078-173-4.
FUSCONI, R. A diversidade microbiana na biotecnologia e na Lei federal 10.639/03. Minicurso. XXII Semana Científica de Estudos Biológicos, Universidade Federal de Uberlândia, 2010.
GUSSON, E. Uso e diversidade genética em populações naturais de biriba (Eschweilera ovata [Cambess.] Miers): subsídios ao manejo e conservação da espécie. 91p. Dissertação (Mestrado em Agroecossistemas) – ESALQ, Universidade de São Paulo, 2003.
MANICA, A.; AMOS, W.; BALLOUX, F; HANIHARA, T., The Effect of Ancient Population Bottlenecks on Human Phenotypic Variation, Nature, v.448, p.346-348,2007.
ONGOL M.P.; ASANO K. Main Microorganisms Involved in the Fermentation of Ugandan Ghee. International Journal of Food Microbiology, 133, p.286–291, 2009.
PLOWDEN, C.; UHL, C.; OLIVEIRA, F.A. The Ecology and Harvest Potential of Titica Vine Roots (Heteropsis flexuosa: Araceae) the Eastern Brazilian Amazon. Forest Ecology and Management, v.182, p. 59-73, 2003.
PRANDI, R., Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
QUEIROZ, M.A. de. Conservação e desenvolvimento de cucurbitáceas no Nordeste brasileiro. In: ENCONTRO DE GENÉTICA DO NORDESTE, 1993, Tereseina. Anais. Teresina: UFPI, p.69, 1993.
SHAFFER, Kay. O Berimbau-de-barriga e seus toques. Rio de Janeiro: Funarte, 1977.
SHERBY, O. D.; WADSWORTH, J., Ancient Blacksmith, the Iron Age, Damascus Steels, and Modern Metallurgy, Journal of Materials Processing Technology, v. 117, p. 347-353, 2001.
WONG, K., O encontro de uma nova espécie, Scientific American Brasil, no 37, p. 16-19, 2010.
Fonte: A Cor da Cultura
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