Na semana da Consciência Negra, cerca de 50 mil mulheres negras de todo o Brasil vieram à capital do país para a Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, a violência e pelo bem viver.
Pertencentes a diversas tribos, idades, religiões, movimentos sociais e
organizações locais, viajaram horas de ônibus, enfrentaram a pouca
estrutura disponibilizada pelos governos e o céu nublado de Brasília
para pedir por educação, saúde, segurança e justiça, pautas detalhadas
na Carta das Mulheres Negras 2015.
Guerreiras em luta desde sempre,
as mulheres negras e suas crianças chegaram ao Congresso Nacional e
foram surpreendidas com uma situação absurda: tiveram que enfrentar
bombas e tiros de manifestantes “pro impeachment” e “pro intervenção
militar” que estão acampados há meses, um cenário de terror e pânico em
que por sorte (?) não aconteceu uma tragédia. Simbolismo do horror,
essas mães e trabalhadoras, jovens e senhoras, bebês e crianças, foram
mais uma vez vítimas da violência do Estado brasileiro: é inadmissível
que isso tenha acontecido após as autoridades já terem identificado armas no local na semana passada; é inadmissível que os nomes desses policiais não sejam mencionados nas notícias de jornais, um dos agressores, que afirmou ter se sentido ameaçado (?), já havia sido preso na ultima semana quando não foi sequer algemado; é inadmissível que as manchetes de jornais ainda tentem culpar as mulheres em marcha pelo ocorrido!
Eu estava na Marcha um pouco mais
cedo, e encontrei uma amiga com a filha de apenas dois meses, fiquei
apavorada quando soube, tentando contato, buscando informação. Para se
ter uma ideia do horror, vejam aqui o vídeo em
que Adriana Martins, da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB),
denuncia o ocorrido direto da Esplanada dos Ministérios, e também o
depoimento de Natália Alves, que estava próxima a um dos homens armados.
A Marcha tem sido gestada há mais de
três anos por meio de atividades, busca de recursos para se
auto-financiar, oficinas e seminários nos municípios e comunidades, onde
diversas gerações de mulheres negras se encontraram para debater a
questão do racismo estruturante no Brasil e como reagir a um cenário
alarmante: apesar de alguns avanços com relação ao enfrentamento ao
racismo na última década, chegamos a 2015 com o extermínio da juventude negra em curso (14% de aumento de morte letal de 2003 a 2012; a cada 1 jovem branco morto, morrem 4 jovens negros) e aumento de 54% do número de mulheres negras mortas vítimas de violência doméstica, ambos números do Mapa da Violência 2015, coordenado pelo sociólogo Julio Jacobo.
Além disso, os avanços estão
ameaçados devido à crise econômica, a dívida pública, um instrumento de
repasse de recursos para os especuladores do mercado financeiro, e os
consequentes cortes orçamentários nas agendas de promoção de igualdade
racial e demais políticas sociais. Entre 2003 a 2014 foram investidos
recursos para a superação do racismo, como a criação da Secretaria de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), ações para inclusão social das
camadas mais pobres da população (Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida,
Luz para Todos, etc.), valorização dos territórios e legados, com o
Programa Brasil Quilombola, e políticas para promover a inserção de
jovens negros e negras nas universidades públicas (ações afirmativas) e
privadas (Prouni, Fies), além de avanços legais como a Lei 10.639 e a
‘PEC das Domésticas’.
Por outro lado, progressivamente
algumas dessas agendas foram perdendo força para os interesses do
capital privado: por exemplo, a regularização fundiária de territórios
quilombolas, que passou a andar a passos lentos ainda no segundo mandato
do Governo Lula. A Lei 10.639, que prevê o ensino da história e cultura
afro-brasileira em escolas, tem sido implementada de forma tímida, e
por insistência do controle social vindo da sociedade, especialmente
movimentos negros. A PEC das Domésticas foi aprovada debaixo de reações
racistas incontroladas, públicas, de uma direita brasileira que de
“nova” não tem nada (e que acampa, armada, na porta do Congresso
Nacional).
Ano a ano, o Inesc tem chamado a
atenção para os cortes orçamentários do Governo via “Decreto de
Contingenciamento”, que sempre impactaram as agendas sociais, principalmente a SEPPIR. Chamamos a atenção para a Agenda Brasil, uma verdadeira “des-agenda” que prejudica principalmente o direito universal à saúde. Questionamos, afinal, quanto vale a igualdade racial? Ainda em 2015, a cereja do bolo: o anúncio do fim da SEPPIR como parte do ajuste fiscal.
Acabar com a SEPPIR será um ato,
primeiro de enfraquecimento da agenda de enfrentamento ao racismo –
temos pedido, ao contrário, mais estrutura e recursos para efetivação
dessa pauta! –, e em segundo lugar, um ato simbólico que expressará o
descompromisso do Governo com a reparação histórica devida à população
negra e um total desrespeito com as lutas dos movimentos de negros que
desde a Constituinte tem lutado por mais espaço e avanços na superação
do racismo (luta que vem de muito, muito antes do período democrático
mais recente).
Na ultima semana, nas Marchas de Mulheres contra Cunha e o PL 5069 (PL do Estupro), foram elas, as mulheres negras, as protagonistas da luta.
Sim, porque as mulheres ricas (e brancas) abortam, as pobres (e negras)
morrem. No Brasil, já disse Elza Soares, a carne mais barata do mercado
é a carne negra. E isso não é metáfora. É este país que adota o modelo
norte-americano (que vem sendo denunciado pela ativista Angela Davis)
em que o corpo negro faz parte do “mercado do encarceramento”. É aqui
que se extermina uma geração inteira de jovens negros cooptados pelo
tráfico de drogas, ou simplesmente moradores de periferias ou favelas. É
aqui, que a droga é transportada em helicóptero de deputado e aterriza
em aeroporto do tio do candidato a presidência. O lucro é lavado em
igrejas que não pagam impostos e oprimem as manifestações de matriz
africana, ou vai pra uma “trust” além mar, em algum país desenvolvido. Querem ainda prender meninos e meninas com menos de 18 anos, reduzindo a idade penal ao mesmo tempo em que pretendem revogar o Estatuto do Desarmamento para compra de até nove (!) armas por pessoa. É aqui, na pátria educadora,
que as mulheres presas dão à luz e amamentam com algemas, ao mesmo
tempo em que um ex policial civil, branco, que atira e joga bombas em
mulheres e crianças, é levado preso sorrindo para as câmeras, com as
mãos livres.
E é aqui, que a mulher negra resiste.
Resiste dizendo não ao ‘13 de Maio’. Resiste passando o legado de luta
de geração em geração. Resiste a cada dia trazendo as irmãs pra cima
quando sobem um degrau. Resiste cantando, soltando os cabelos, cobrindo o
corpo de estampa e de branco, trabalhando e caminhando, sem nunca
abaixar a cabeça. Vai ter mulher negra ganhando prêmio internacional.
Vai ter doutora, artista, e espaço no poder. Escolha e diversidade.
Meninos vivos, meninas livres. E racistas, pasmem, vocês não passarão!
Artigo de Carmela Zigoni, assessora política do Inesc. Fotos: Mídia Ninja.
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