Por Esdras Soares para o Portal Geledés
Divulgação Racionais MC’s
A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) divulgou ontem,
dia 23/05, a lista de leituras obrigatórias para o seu vestibular de
2020. Para a surpresa de muitos, o álbum “Sobrevivendo no Inferno”, do
Racionais MC’s, é uma dessas leituras e está na categoria Poesia, ao
lado de “A teus pés”, de Ana Cristina César, e de sonetos de Luís de
Camões. É a primeira vez que um disco é recomendado para o exame.
Formado há 30 anos, o grupo de rap é
incontornável em termos de cultura brasileira e o álbum escolhido tem
uma importância exemplar para nosso país. Nas palavras do poeta Ricardo Aleixo,
“Trata-se de uma obra de ARTE comparável, em termos ético-estéticos, a
monumentos da cultura nossa como “Os Sertões”, o conjunto arquitetônico
da Pampulha, “Grande Sertão: Veredas”, as orquestrações de Pixinguinha, a
poesia concreta, a discografia tropicalista, “Deus e o diabo na terra
do sol”, “Quarto de despejo”, os “bichos” de Lygia, os parangolés &
outros que tais.”
Eu, como professor de um cursinho
popular e comprometido com o fim dos filtros sociais e raciais para
ingresso nas universidades, vivo uma contradição: é correto comemorar e
carregar essa imensa felicidade por ocasião dessa notícia, considerando
que o álbum fará parte de um exame vestibular, um processo
fundamentalmente elitista? Talvez essa também seja uma questão para
outras pessoas.
Antes de responder, quero refletir o
que isso significa para nós, que crescemos vivendo intensamente o álbum
“Sobrevivendo no Inferno”, a ponto de não mais conseguir distinguir
nossa vida das músicas. Leiam o texto do meu parceiro Victor Garofano,
onde ele fala sobre a importância do Racionais MC’s para a população
negra e periférica. É isso: os “quatro pretos mais perigosos do Brasil”
nos deram orgulho e um norte (e/ou um sul!). Nos deram uma linguagem. O
que essa inclusão significa para nós, que hoje somos educadores e
inclusive utilizamos o rap em nossas aulas e propostas?
O ingresso em lugares interditados –
como as universidades, sobretudo as públicas – de pessoas com o perfil
cantado pelo grupo rasga as narrativas predominantes desses ambientes.
Em um movimento semelhante, não é exagero dizer que a entrada dos
Racionais MC’s no vestibular de uma das principais universidades
brasileiras desestabiliza o cânone branco. Por isso, é legítimo e
necessário reivindicar a ocupação desses espaços.
Muitos lembram de um episódio, no mínimo lamentável, ocorrido em abril do ano passado.
Em uma homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus, promovida pela
Academia Carioca de Letras, o conhecido crítico literário e professor de
literatura Ivan Cavalcanti Proença disse que a autora não fazia
literatura. Alguns de nós ficamos revoltados, enquanto outros não se
abalaram muito, porque consideram que não seja relevante o
reconhecimento, por parte dessas instituições, da grandeza artística e
crítica de pessoas como Carolina. Apostam e acham suficiente o “nóis por
nóis”: se essa produção literária circular entre o povo, por meio de
saraus e outras ações culturais de periferia, já basta.
Eu respeito, mas discordo da
estratégia. Acredito que não são táticas excludentes; elas podem
coexistir. Muitos de nós, há algum tempo, vêm seguindo a máxima
popular-periférica “Almoça com os caras, mas janta em casa”. Carolina,
Racionais e outros ícones da nossa gente são capitais e devem estar em
todos os lugares e devemos brigar por isso. Inclusive, a obra mais
conhecida de Carolina, “Quarto de despejo: diário de uma favelada”,
também está nas leituras obrigatórias da Unicamp.
Sabemos da influência de avaliações
externas e de exames nos currículos das escolas. Então, ver essa
produção reconhecida e saber que ainda mais pessoas vão ter que ouvir e
ler o discurso de “um preto tipo A” me dá muita alegria, sim. Se em uma
música de outro álbum, os Racionais cantam “entrei pelo seu rádio,
tomei, cê nem viu”, agora isso também vai acontecer por meio de um
vestibular. Tudo nosso.
Então, sim, devemos comemorar. E muito.
Fonte: Geledés
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